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Tragédia climática: romance Falso Lago, da escritora gaúcha Carolina Panta, retrata enchentes em Porto Alegre por meio do olhar de uma assistente social

Uma mulher em situação de rua e alcoólatra, que se torna marginalizada em uma rua de classe média de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Outra mulher, por sua vez de classe média, observa, de sua janela, os passos da primeira mulher. Uma enchente no Guaíba que muda tudo. É este o ponto de partida do romance Falso Lago” (176 págs.), da escritora gaúcha Carolina Panta, publicado pela Editora Zouk. Através da vida dessas duas mulheres – e de outras figuras que Luciana vai encontrar no bairro Arquipélago, como dona Almerinda – Carolina nos mergulha em uma potente história que nos faz encarar temas como desigualdade social e de gênero, instituições de assistência e saúde mental, crise climática, a vida de pessoas em situação de rua, além de estigmas e preconceitos das chamadas elites sociais e culturais de nosso país. 

Outros assuntos tratados em “Falso Lago” são identidade e memória, relações familiares, pertencimento e deslocamento, amor e perda, resiliência e transformação e, por fim, natureza e espaço urbano. “Eles refletem aspectos fundamentais da experiência humana, promovendo a introspecção, a empatia, a compreensão cultural e a consciência social e ambiental”, frisa a autora. 

Uma história que nasceu no Guaíba – ou a literatura como “geografia feminina”

Publicado em 2023, “Falso Lago” voltou a chamar atenção por tratar do tema das enchentes em Porto Alegre. Com a tragédia que assolou o estado do Rio Grande do Sul meses atrás, o romance se torna uma importante reflexão para algo que parecia iminente, trazendo a lembrança da cidade de Macondo, do livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Marquez.

A relação de Carolina com o Guaíba vem da infância. Moradora da Zona Sul de Porto Alegre, o rio-lago-lagoa é mais que paisagem — é presença. “O Guaíba não é somente moldura para o pôr-do-sol da cidade, mas sim um lugar de preservação importante e de grande relevância histórica e social para o desenvolvimento de Porto Alegre”, frisa. “Guaíba é natureza, não é pintura. É massa de água corpulenta a mobiliar memórias e, quando bate alto a cota de inundação, destrói tudo de quem pouco tem.” 

E se para alguns o falso lago é paisagem, a outros é casa e sustento. É o caso das ilhas de Porto Alegre, o bairro conhecido como Arquipélago. “São pessoas esquecidas pelo poder público e marginalizadas pela cidade que esquece que ‘lá’ também é Porto Alegre”, explica. O livro nasceu junto à construção da nova ponte sobre o Guaíba que acabou por realocar milhares de famílias. Uma ponte desenhada sobre as pessoas sem que nenhuma engenharia se importasse para onde essas pessoas seriam deslocadas. “A ideia do livro se originou no encantamento pelo corpo de água e, também, pela necessidade de dar visibilidade ao povo das ilhas, descolado de seus direitos vindos do continente.”

Carolina se refere a sua escrita como uma “geografia feminina” sobre “o que não tem nome ou dos nomes que necessitam ser desfeitos.” “Quem precisa saber se é rio, lago ou estuário na inundação das ruas? Depressão e loucura se dissolvem nas águas, ilhas, tripas e sulcos da cidade. E o que resta é profundamente humano”, completa. 

Conheça a história de “Falso Lago”

Cláudia é uma jovem mulher que vive nas ruas porto-alegrenses. Acostumada a sofrer todo tipo de violência, vocifera com quase todos que tentam se aproximar. Antes, já havia recusado colchonetes e roupas e preferia viver em um ponto de ônibus ao lado de sua cadela e alguns filhotes. Quando tinha fome, ficava na porta dos prédios para pedir “só uma moedinha” e, ao receber uma negativa, xingava alto, chamando atenção de todo bairro. 

Do outro lado, temos Luciana, de classe média. Conheceu Cláudia anos atrás, quando era estagiária de uma casa de recolhimento de adolescentes infratores — Cláudia havia colocado fogo nos colchões da casa dos tios onde morava após se revoltar pelos constantes abusos sexuais sofridos no lugar. 

Anos depois, a vida das duas se reencontram em situações absolutamente diferentes, mas não sem suas semelhanças. Durante um temporal nas proximidades do Guaíba, no entanto, a vida delas começa a mudar. Muito por conta desse encontro, Luciana resolve voltar a trabalhar como assistente social em um bairro chamado Arquipélago, conhecido por uma região com uma brutal fronteira de desigualdade social: de um lado, casas imensas de gente “importante” e, de outro, a pobreza. Tudo isso na beira do rio, sempre afetado pelas enchentes.

Dentre as figuras, podemos destacar a menina Bruna Carla, de 9 anos, que, enquanto brincava com as outras crianças, via seu corpo chegar à puberdade, a faxineira dona Lelé e, principalmente, dona Almerinda, senhora de idade “tão encurvada pela vida que se punha em formato de vírgula”. “Quis tratar da ideia de que nos movimentamos pela vida independentemente das adversidades a nós impostas; da necessidade de se enxergar aqueles que são marginalizados em grandes centros urbanos, os personagens invisíveis”, afirma Carolina. 

Carolina Panta: edição, escrita e invenção crítica da terra

Carolina Panta nasceu em Porto Alegre e é professora de Língua Portuguesa e Literatura, formada em Letras pela UFRGS. É editora da revista literária La Loba. Participa como escritora convidada da coletânea de contos escritos por mulheres Quebra-Ventres (Peripécia, 2023). Publicou os romances Dois Nós (Metamorfose, 2019), Olivetti Lettera 32 (Zouk, 2021) e Falso Lago (Zouk, 2023).

As principais influências da autora são Ruth Guimarães, Lygia Fagundes Telles e Gabriel García Márquez, refletindo um rico entrelaçamento de estilos e temas. Segundo Carolina, de Ruth Guimarães, ela herda a sensibilidade para retratar a cultura e as tradições brasileiras, imbuindo suas histórias com um profundo sentido de identidade e pertencimento. De Lygia Fagundes Telles, se manifesta a exploração da psicologia dos personagens e os conflitos internos, criando narrativas densas e emocionalmente complexas. De Gabriel García Márquez, recupera o realismo mágico, a mescla entre o cotidiano e o fantástico, trazendo uma dimensão mágica e onírica para as histórias.

Sobre seus próximos passos na literatura, Carolina revela que pretende, em breve, concluir um livro de 20 contos. Chama-se Terra-Chã, com contos que são entrecortados por personagens, crianças sobrevivendo em um mundo selvagem e hostil a elas. Terra-chã é a infância, sem morros ou grandes depressões. E a infância é uma terra que se carrega debaixo das unhas uma vida inteira.

Confira um trecho de “Falso Lago” (pág. 9):

“Quando o que é de dentro transborda, leva mato, galho, lama. Escorre abrindo sulco em terra dura, arrasta rocha de tonelada morro abaixo. A enxurrada interna derruba com força, dá caldo daqueles de sensação ruim no nariz. E a gente tenta ajeitar as roupas desarrumadas pelo corpo que já não cobrem mais nada. Uma cena tão ridícula quanto se afogar no raso do mar. Na água em que os velhos mijam, lugar em que as crianças pequenas ainda dão pé.” 

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